O futebol feminino estava em efervescência no subúrbio do Rio de Janeiro em 1940. Havia 15 equipes competindo entre si. A modalidade se tornava tão popular que, naquele ano, dois desses times foram chamados para fazer um jogo preliminar no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu, onde os homens de São Paulo e Flamengo se enfrentariam.
Na capital paulista, mulheres de chuteiras eram uma completa novidade. O jogo entre Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro despertou grande entusiasmo no público de 65 mil pessoas, segundo a imprensa da época. Ao mesmo tempo, despertou a ira de setores conservadores e serviu de estopim para a proibição da modalidade no Brasil por 38 anos.
No dia 7 de maio de 1940, dez dias antes do jogo no Pacaembu, José Fuzeira endereçou ao então presidente Getúlio Vargas, uma carta com o seguinte título: “Um disparate sportivo que não deve prosseguir”. Fuzeira era uma figura sem holofotes, autor de livros sobre normas de conduta social e obras como Judas Iscariotes e a sua reencarnação como Joana D’Arc.
Na correspondência, Fuzeira alertava que o crescimento da modalidade na capital federal poderia se expandir para todo o país e afetar “o equilíbrio psicológico das funções orgânicas [da mulher], devido à natureza que a dispôs a ‘ser mãe'”. Embora o próprio autor reconhecesse não ter qualquer autoridade “educacional ou científica”, a reclamação, publicada no jornal carioca Diário da Noite, fez Getúlio se mexer.
“Pelas minhas pesquisas nos registros da época, fica claro que a carta foi recebida como uma denúncia”, comenta a historiadora Aira Bonfim, pesquisadora do Museu do Futebol. O governo encomendou um parecer técnico do então Ministério da Educação e Saúde Pública, que desaconselhou a prática do futebol por mulheres, bem como outros esportes de contato – lutas, rugby e polo aquático.
O laudo do ministério mencionava a proibição do futebol feminino na Inglaterra, em 1921, citando estudos científicos realizados naquele país, e falava na conveniência de organizar uma campanha contra a modalidade. Coincidência ou não, a perseguição pela imprensa se intensificou.
A prisão de Dona Carlota
Em janeiro de 1941, ocorreu a prisão de Dona Carlota, figura central no desenvolvimento do futebol feminino no subúrbio, ajudando a formar equipes. A “dirigente” foi responsável por organizar a viagem a São Paulo. Após o sucesso no Pacaembu, Carlota recebeu um convite para excursionar com suas equipes por Buenos Aires e Montevidéu.
“Se houve uma forte reação quando Leônidas da Silva e Arthur Friedenreich, jogadores negros, foram convidados para representar o Brasil no exterior, imagine quando meninas pretas, pobres e suburbanas tiveram a oportunidade de representar nacionalmente o país jogando bola”, diz Aira Bonfim. “O pedido de prisão e a desqualificação dela começaram imediatamente em seguida.”
Surgiram, então, diversas reportagens na imprensa que apontavam Dona Carlota como aliciadora de menores. Sua casa, onde também funcionava um clube, foi descrita como um “antro de perdição”, onde meninas falavam alto e fumavam. “Atrelar pessoas de outras classes à malandragem convence muito mais a população do que falar na biologia do quadril”, ressalta Bonfim.
Apenas três meses após a prisão de Dona Carlota, no dia 14 de abril de 1941, Getúlio Vargas assinou o decreto-lei que criou o Conselho Nacional de Desportos (CND).
No artigo 54, foi explicitado que não seria permitido às mulheres a prática de determinados esportes, devido a características próprias da natureza feminina.
Não foram mencionadas quais seriam as modalidades vetadas, o que só aconteceria em outra deliberação de 1965. Mas a imprensa trataria de enfatizar o veto ao futebol feminino, em pleno Estado Novo, quando desafiar o governo não era conveniente.
A proibição, que vigorou até 1979, interrompeu o desenvolvimento de uma modalidade em franca ascensão. Antes que equipes como o Cassino Realengo e o S.C. Brasileiro se tornassem realidade, os circos foram o palco experimental do futebol feminino, ainda nos anos 1920, com exibições que atraíam grandes públicos ao longo de até quatro dias consecutivos.
Embora a proposta fosse associar o esporte ao humor, a historiadora Aira Bonfim enxerga um papel fundamental da atividade circense na mudança de perspectiva sobre o futebol feminino. “O circo é agente popularizador da ideia que mulher podia jogar bola. E é itinerante, vai fazer isso de Norte a Sul. Nas minhas pesquisas, eu chego até Pernambuco, mas registros indicam que pode ter se estendido até Amazonas e Rio Grande do Sul”, conta.
Pioneirismo do Vasco da Gama
Em 1923 o Vasco já contava com um time de futebol feminino, como mostra a reportagem abaixo, publicada na edição de 1º de setembro daquele ano da Revista da Semana. A equipe se chamava S. C. Feminino Vasco da Gama, era oficialmente filiada ao CRVG e treinava no campo da Rua Morais e Silva, o mesmo utilizado pelo time masculino.
A historiadora também destaca a importância do Vasco da Gama na quebra de barreiras do futebol feminino. O clube – que foi campeão carioca em 1923 de forma pioneira – com um time formado por negros e analfabetos, havia se tornado muito popular no subúrbio da cidade. Naquele mesmo ano, o Vasco teve uma equipe formada por torcedoras, que jogavam entre si, na falta de adversárias.
“Quando pesquiso as jogadoras das equipes do subúrbio em 1939, 1940, constato que várias já integravam o futebol das vascaínas que acontece em 1923, 1925 e 1929”, explica Bonfim. “O clube fica na divisa dos bairros suburbanos, e tem essa importância na iniciação esportiva das mulheres, que até então não tinham campos ou quadras à disposição no subúrbio.”
Foi justamente no clube carioca que Marta surgiu para o futebol. Eleita melhor jogadora do mundo pela Fifa por seis vezes, ela é a grande referência das novas gerações de jogadoras na superação dos efeitos desastrosos de quase quatro décadas de proibição da modalidade no Brasil.
“Continuamos lutando pelo nosso espaço a cada dia”
Destaque do Botafogo no Campeonato Carioca, a atleta Vivian Cardoso, de 23 anos, diz ser difícil acreditar que o decreto pôde existir algum dia. “Esse tempo só serviu para que nós estivéssemos atrás em questão de evolução da modalidade. Continuamos lutando pelo nosso espaço a cada dia, mas sofremos com comparações injustas pelo fato de ficarmos 40 anos sem poder praticar”, afirma.
Andressa Alves, atacante da Roma e da seleção brasileira, acredita que a modalidade tenha deixado de ser mal vista. No entanto, considera que ainda há poucas informações sobre o futebol feminino e seu potencial de rentabilidade para televisões e a área de marketing. Para Andressa, as principais barreiras para as atletas estão na dificuldade de chegar a um clube com boas condições.
“Tem poucos clubes com estruturas boas para uma jovem começar a jogar. É muito difícil, mas o Brasil vem melhorando bastante, começando a criar campeonatos competitivos na base e no principal. Isso vai ajudar bastante as novas gerações a terem mais oportunidades”, avalia.
AURIEL DE ALMEIDA – Escritor e autor.
Em 1940, o futebol feminino se tornou uma verdadeira febre que atraía torcedores e estava prestes a ganhar todo o país. Infelizmente, esse cenário próspero, que pode até soar fictício, recebeu um duro golpe com a decisão do Governo Vargas de proibir a participação de mulheres em esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”.
Escrita pelo museólogo e pesquisador Auriel de Almeida e publicada pela Hanoi Editora, a obra Evas do Gramado resgata a trajetória do Primavera Atlético Clube, sediado no Rio de Janeiro, de sua fundadora Carlota Alves de Rezende e das craques Nicéa, Sally e Aída. Hoje praticamente desconhecidas, elas foram as responsáveis por comandar o time que se tornou o maior representante feminino da capital carioca, na época também capital nacional, antes do banimento.
Os impactos dessa proibição, que durou quase 40 anos e só foi derrubada em 1979, reverberam no esporte até hoje. Apesar da excelência das mulheres no futebol – a artilheira Marta, por exemplo, é recordista em títulos de melhor jogadora do mundo, e isso inclui os homens –, os investimentos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na seleção feminina seguem escassos, com queda de 40% em 2022, enquanto a masculina recebeu 45% a mais de apoio.
Os relatos de Evas do Gramado, no entanto, comprovam que o futebol feminino faz parte da tradição esportiva do país. Por meio de uma pesquisa documental minuciosa, o livro reconta a trajetória do clube de forma envolvente, desde seu surgimento e inúmeras partidas de sucesso, até a perseguição policial baseada em acusações infundadas e o encerramento forçado da equipe.
Um pesadelo sem fim. Assim podia ser definido os dias que se seguiram à prisão de Carlota Alves de Rezende, com a ridícula acusação de lenocínio. O Primavera Atlético Clube havia sido fechado pela polícia, e os demais clubes, com medo, evitavam a marcação de partidas. Era evidente que esta era só uma forma de constranger a prática de futebol feminino.
(Evas do Gramado, p. 85)
O livro também aborda outras equipes femininas de sucesso da época como o Sport Club Brasileiro, Cassino Realengo, Opposição e Independente. Empregando diálogos e descrições que transportam o leitor para dentro da história, o autor evidencia a importância de conhecer a fundo os triunfos e percalços dessas mulheres.
Ao ressaltar o legado das jogadoras no futebol e relembrar o potencial sufocado pelo Estado e pela falta de investimento das instituições reguladoras, Auriel de Almeida oferece aos leitores uma oportunidade única de se familiarizar com um fragmento menosprezado, porém crucial, da memória brasileira.
Evas do Gramado, além de documentar um afronte às liberdades, se destaca como uma ode às pioneiras que abriram caminho para as gerações futuras de esportistas.
Ficha técnica
Livro: Evas do Gramado – A história do Primavera Atlético Clube, o time de futebol feminino proibido no Governo Vargas
Autoria: Auriel de Almeida
Editora: Hanoi Editora
ISBN: 978-8554823009
Páginas: 108
Preço: R$ 48,00
Onde encontrar: Amazon, Hanoi Editora
Publicado em 30/07/2024